Aquela que toca alma e água
- Raissa Teles

- 6 de out.
- 3 min de leitura
Quando sento nela, principalmente ali no voga - o banco um - respiro fundo e olho pro horizonte. Alongo minha coluna, enraizo meus pés na canoa. Como se eu estivesse ajustando meus dedos dentro de luvas, mexo minhas mãos para invocar a extensão de meus braços através do remo. Presença. Inspiro profundamente com os olhos fechados, e, na chamada do capitão, exalo e finco meu remo na água. Como se eu fosse um humano-peixe, que com barbatanas de madeira toca as ondas com firmeza, me entrego ao fluir do remar em coletivo, enquanto o vento sopra nossa vela com destreza.

Me sinto um, com ela e com ele.
Com a canoa e com o mar.
E com cada ser humano ali, que - também com suas barbatanas de madeira, remam em sincronia.
Percebi então, que não importa a embarcação, o que eu quero é navegar.
O que eu preciso é voltar pro mar.
Quando estou lá fora, me sinto lúcida. Como se a força do real tamanho da humildade tomasse conta de mim.
E cada forma de estar no mar desperta algo único em mim, que gostaria que todo ser humano sentisse:
Mintaka, nosso primeiro barco de 11 metros, despertava em mim a sensação de lar, de retorno pra casa - não só o oceano como lar ancestral, mas um retorno para mim. Para minha essência humana.
Os tallships que viemos a navegar nos anos seguintes, variavam de seus 25m a 40m.
Robustos e com suas enormes velas pomposas, despertavam em mim a sensação de comunidade, a potência da vida em coletivo, tão necessária nos dias de hoje. Sensação essa que é ainda mais aguda quando vivida em um ambiente confinado como um barco.
Mas agora vou te contar: eu ouvia o chamado de ir pro mar muitos anos antes de comprar nosso primeiro barco, mas foi a primeira vez que sentei em uma canoa Polinésia, janeiro de 2018, que plantei a semente desse sonho regado por água salgada.
Foi na canoa onde tudo começou.

A canoa, com seus meros 7 metros e apenas 4 tripulantes, desperta em mim um relembrar: de alguma vida em que canoas eram como membros da minha família, e eu vivia cercada por elas, talvez remando pelas as ilhas da polinésia ou do Hawaii, navegando com as estrelas, lendo o vôo dos pássaros e o sutil toque do vento.
A canoa desperta a conexão com o ancestral, selvagem, intuitivo, cru.
Remar pela primeira vez foi minha iniciação nessa vida no mar. Dali em diante, nunca mais nos desgrudamos.
E nunca mais parei de remar.

Por mais que eu saiba que seguirei a serviço junto de grandes embarcações, para que você e muitos outros seres se juntem a nós nas nossas expedições, sei também que seguirei remando.
Porque quero seguir lembrando.
Porque quero aprofundar minha conexão com o mar e com a natureza da existência, na simplicidade que só a canoa oferece.
Porque quero seguir navegando pertinho da água, totalmente exposta aos elementos, sentindo o sol ou chuva, o vento forte ou fraco, e utilizando minhas barbatanas de madeira como um leme que dá a direção da minha embarcação.
Pira Veve, nossa canoa, nasceu.
Ela nasceu para remar, velejar e surfar. Para nos guiar de volta às origens, em reconexão com nossos ancestrais. Para nos trazer pertinho de nosso mestre sem ego, tocando a água, tocando a alma.

Batizamos Pira Veve, que em Tupi Guarani - tronco linguístico de muitos dos povos originários que habitavam amplamente a costa brasileira, significa "Peixe Voador". O mesmo nome que, curiosamente, muitos anos atrás recebemos para nosso futuro barco.
Com a mistura de água doce e salgada - símbolo de onde a canoa vem e para onde ela segue, rezamos, agradecemos e nos preparamos para nossa primeira pequena travessia com ela.
Voamos e navegamos, para lembrar que o que está acima é o que está abaixo, e que velejar pela infinitude do mar é como voar tão alto como lá com as estrelas, ou tão dentro da imensidão de nosso mar interno.
Pira Veve é pequena mas é gigante.
É nosso portal para a grande medicina que o mar quer nos dar: não só a mim, mas à humanidade, nos ensinando valores que o mundo — em tempos de tanta loucura — precisa sentir para além do compreender, para tornar a mente mais sã e a alma mais viva.
Se quiser entender o que estou dizendo, só assistir esse vídeo:
Agradecimentos
Um agradecimento enorme ao Cauê e à Pp, dois atletas incríveis que estiveram conosco a bordo: ensinando, guiando e compartilhando suas forças.
E um agradecimento especial ao Cauê e à Core Va'a, que construiu nossa canoa com tanto amor.



Comentários