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A última travessia

Atualizado: 29 de jan. de 2022

260 milhas de uma travessia com sabor de despedida



Quatro da manhã.


Meu despertador toca aquela musiquinha chata, dizendo que chegou a hora de voltar para o meu turno no cockpit, após duas horas de descanso que mais pareceram 2 minutos.


Cambaleando e me segurando para não cair, fui até o banheiro lavar o rosto pra ver se eu melhorava.


Visto minha roupa. Calço meu tênis. Pego a jaqueta. O colete salva vidas.

Coloco o rosto pra fora lentamente, para espiar a situação.

Chris está lá no meu aguardo.


Ele me passou "as notícias do cockpit" - que é um resumo do que aconteceu no mar e no barco nas últimas horas, me desejou um "bom turno", e desceu direto pro nosso bercinho - nome que damos à cama durante a travessia.

Chris em seu bercinho


Sentei no cockpit e já me "clipei" - como de costume. Essa é uma das poucas regras que temos à bordo, afinal, se eu caio no mar na escuridão da noite enquanto o Chris está dormindo, seria uma morte bem solitária e silenciosa, sem tempo pra qualquer despedida.


Respirei fundo.

Olhei no relógio.

Duas longas horas pela frente.

Parecia uma eternidade.


Eu sentia um cansaço monstruoso, como nunca antes havia experimentado.

Parecia que tinha uma enorme pedra me pressionando para baixo e me pedindo para colocar meu corpo na horizontal.

Me sentia fraca.

Dor de cabeça pulsando.

Um leve enjôo.

Tontura.

Meus olhos tentavam fechar a cada segundo.

Tipo um pesadelo lúcido.


Era uma guerra entre meu corpo e minha mente.

O corpo queria se entregar totalmente àquela exaustão.

Mas minha mente dizia com força e clareza: "Não! Agora não!"

Como um cachorrinho que coloca o rabo entre as pernas, meu corpo aceitava o "não" no início, mas logo reclamava: "não to nem aí, vou desligar o sistema e te colocar pra dormir!".


Me render ao sono no cockpit enquanto o Chris está lá embaixo apagado, pode significar um grande risco. Nesse revezamento de turnos, quando um desce para a cama é como entregar o bastão da confiança ao outro.


Confiar a própria vida e a segurança do barco aos olhos atentos e mãos ágeis de quem fica no turno ACORDADO junto ao leme.


Principalmente à noite, quando temos pouca visibilidade, a atenção plena é nossa fiel escudeira.


Observar as luzes dos barcos de pesca, mudar o rumo se necessário, estar atento ao vento e às ondas, navios cargueiros ou redes de pesca. No mar aberto não existem ruas retas com semáforo e faixa de pedestres para "garantir" a organização do trânsito.


O que existe é uma imensidão aberta que requer a auto responsabilidade de cada navegador, para que cuidem de sua segurança e do próximo. É essencial a clareza do próprio rumo, sem entrar em nenhuma rota de colisão com os obstáculos que podem surgir no horizonte a qualquer instante.

Entrando na noite.


Eu me alongava. Olhava o mar. Trimava as velas. Sentava de um lado. Depois do outro. Olhava o mar. Trimava as velas. Me alongava. Sentava de um lado. Depois do outro.


Tentava de tudo pra me manter acordada.


Para piorar a situação, o barco parecia como eu: se arrastando pelo mar.

Dois pesos pesados que mal conseguiam se mover.


Tinha algo estranho com Mintaka. Parecia que ela estava navegando parada.

O vento estava bom e a ondulação também ao nosso favor. Mas o barco não passava dos 3 nós de velocidade, estando mais próximo dos 2 para falar a verdade.


TÃO lento! Estava agoniada.


Dizem que no mar a calmaria é pior que a tempestade. Pela primeira vez, pude entender essa frase.


Tudo o que eu queria ali era uma rajada, um pirajá, uma chuva, umas ondas, vento forte, alguma coisa que viesse de fora e que me ajudasse a me mover dentro.

Mas nada de nada. Nem dentro nem fora.


Tédio.

Eu achava que o problema era das velas. Tentei de tudo para ajustar a genoa e a mestra no ponto perfeito.


Sem sucesso.


Estava quase desmaiando, quando a luz no horizonte começa a surgir e iluminar a escuridão com seus tons de laranja e vermelho. Esse é um dos momentos mais mágicos das travessias: o nascer do sol.

Mas dessa vez, nem mesmo a luz do sol me alegrou.


Pelo contrário. Com a luz, meus olhos começaram a doer ainda mais. A claridade foi me deixando mais sensível, e a vontade de fechar os olhos aos poucos se transformava em uma necessidade.


Dor e o mais puro desconforto era o que eu conseguia sentir.

E confesso, um certo mau humor também.

Me lembrei da pergunta que o Chris me fez no meio da noite: "Por que mesmo que gostamos tanto disso?"


Falando em Chris, após aquele sabático de 2 horas, ele finalmente acordou e veio pro turno dele. Eu me joguei como um raio no bercinho, levando comigo aquela pergunta que pulsava no ritmo da dor de cabeça.


"Por que mesmo que gosto tanto disso?"

Duas horas depois, o Chris me acorda novamente, dessa vez com café da manhã servido.


Sol já lá em cima no céu.

Um calor de matar.

Mintaka ainda navegando quase parada.

Eu ainda passando mal.


Decidi que daria um basta naquele mal estar.

Não dava pra continuar me arrastando assim pelas próximas 150milhas.


Lavei meu rosto e sentei no cockpit fingindo estar plena.


"Fake it until you make it".


Em português - "Finja até conseguir", é o que dizem por aí.


Juro que deu certo.

A comida ajudou. Água também.

Percebi que minha dor de cabeça provavelmente vinha de uma desidratação - muito comum naquele sal e sol constante que estávamos.


Descobrimos o porquê do barco estar tão pesado: tinha uma enorme quantidade de baronesas (umas plantas aquáticas) presas no nosso leme e hélice.


Mintaka estava se arrastando lentamente pelas ondas, pois tinha uma mini floresta presa nela.


Sem precisar mergulhar, conseguimos tirar a floresta com a ajuda de um grande gancho preso num pedaço de pau.


Leveza começava a se instalar novamente a bordo.

Tanto no barco, como em mim.


Peguei meu caderno e comecei a escrever a resposta para aquela fatídica pergunta que pulsou durante meu sono.

Nunca, em quatro anos de vida no mar, senti tamanha clareza do porquê disso tudo.


Percebi que mesmo em meio ao desconforto, quando estou no mar eu sinto que pertenço.


Pertencimento não apenas naquele espaço configurado por ondas e vento, mas principalmente no espaço da minha própria pele.

Quando eu estou no mar, eu sinto que chego em mim.

Ocupo meu ser.

Estou exatamente onde eu queria estar.

Sinto o desconforto do começo ao fim.


E tudo, absolutamente tudo, que nos permitimos sentir do começo ao fim, sem atalhos ou desvios, é a experiência na sua forma mais nu.


E eu amo a nudez. Não só a do corpo, mas principalmente da alma.

É isso! No mar eu sinto a experiência de ser humano por completo, do mais alto pico do êxtase e do amor, ao mais baixo vale do cansaço e do medo. E mais importante, o mar me ensina a sentir tudo isso sem projetar no outro. Ou seja, sem reclamar ou transferir meu mau ou bom humor para a tripulação ao redor (no caso, o Chris). Minhas emoções são minhas, e ninguém é culpado do que sinto. Quando assumo e cuido do que é meu, atuo como soberana e não vítima de mim mesma. É isso que faz um barco seguir navegando, pois dizem que quem afunda barco não é o mar, e sim a sua tripulação.


Isso serve para a vida todinha.

Eu, Mintaka, Mintakinha e o mar.

No mar me sinto viva.


Tomei um café e comi uma mexerica na proa. Sozinha. Amarrada.


Ao meu redor não tinha nada.

Mas eu sabia que aquele nada era tudo.

Meus olhos só enxergavam azul. O azul cintilante do mar e o azul bebê do céu.


Dois tons de azul divididos no vasto infinito.

O que você sente ao assistir esse vídeo?


Fechei os olhos emocionada.


Respirei fundo, e observei minha energia mudando, como se ela estivesse escalando o monte Everest das minhas entranhas.


Saí do fundo do poço do cocô do cavalo do bandido, para o topo da fortaleza de me sentir plena e conectada ao Todo.

Integração.


Mestre da não separação, das não fronteiras, da união entre os continentes: o mar me ensina a integrar.

Ser tudo que posso ser.

Luz e sombra.

Desconforto e conforto.

Cansaço e vitalidade.

Medo e amor.


Afinal, quem tem medo de sentir medo, também não sente o amor por completo.

Não escolho sentir a vida pela metade.



A segunda noite de travessia foi só alegria. A perfeita outra polaridade daquela primeira noite em que eu me arrastava junto de Mintaka pelo mar da agonia.

Mesmo dormindo pouco, eu estava em puro flow. Chris também. E assim iniciamos nosso terceiro dia como a cereja do bolo da nossa última travessia.

Demos muita risada juntos. Falamos besteira e fizemos piadas. A gente fica meio bobo lá longe.


Gritamos que nem loucos pro vasto horizonte. Silenciamos. Contemplamos. Fizemos amor. Cozinhamos gostosuras. Filosofamos sobre a vida. Pescamos e perdemos três peixes. Sonhamos com Volans. Agradecemos Mintaka.



Um dia mar: comendo, tomando banho, fazendo cocô, cochilando.

Quando de repente Chris grita: "Golfinhos!"


Corremos até a proa, e lá estavam eles.


Seres mágicos que chegaram para brincar junto de nós.


Eles saltavam, giravam, nadavam e deslizavam como numa dança perfeita entre eles e o barco. Parecia até que eles tinham vindo se despedir de Mintaka.


Nossas bochechas se alongavam de tanto sorrir e gritar de alegria. Estávamos em êxtase.

Sem palavras.


Assim que eles foram embora, não deu outra: me derramei em lágrimas.


Chorei toda a água salgada do meu mar interno.

Acessei a dor da saudade precipitada.

Lembrei-me que não mais velejaria com essa nave-barco, que por quatro anos nos levou de volta ao lar-mar.


Soluçando, me agarrei nos cunhos de proa e beijei o convés. Queria que aquele momento nunca mais acabasse. (Será mesmo?)


Eu agarrada e chorando na proa.

Em meio às lágrimas e um discurso de amor ao mar e à Mintaka, notei que os golfinhos tinham voltado.


Golfinhos são mensageiros da alegria.

Eles conversavam comigo. Estavam querendo me contar algo:


"Amiga humana, não precisa chorar! Troque a tristeza pela gratidão e a saudade pela presença. Mintaka seguirá navegando e o mar seguirá sendo sua casa. Estaremos aqui para quando você voltar".

E logo eles foram embora novamente. Dessa vez, não voltaram mais.

Nunca havia me comunicado tão diretamente com animais.

Realmente parecia que eles tinham voltado apenas para me lembrar do que eu tinha esquecido.


Não se ignora conselho de golfinhos.

Ainda chorando, mas agora de alegria, agradeci a Mintaka.

Agradeci o mar.

Agradeci o Chris.

Agradeci os golfinhos e todos os outros seres que ali habitam.

Agradeci a mim mesma.


Uma última travessia que nos ofereceu a experiência por completo, nos lembrando de não viver a vida pelas beiradas. Um convite do mar para integrar todas as polaridades que tentam me separar de mim, para seguir íntegra no rumo do meu coração.


Às vezes é preciso se afastar aparentemente do sonho, para ajustar nossa embarcação e depois voltar pro rumo mais forte que antes.


A coragem de encerrar esse ciclo a bordo de Mintaka é exatamente o passo necessário agora, para seguir tornando o nosso sonho mais real!


260milhas inesquecíveis entre a Barra de São Miguel e Salvador.

60 horas de mar e da experiência mais verdadeira de ser tudo que eu posso ser hoje.


Se três dias de travessia já foram assim, fico sonhando com o dia que eu cruzar um oceano.


Mintaka fazendo sua arte.


Seguiremos em travessia por terra pelo próximo ano. Vamos nos preparar e fazer tudo o necessário, para voltarmos pro mar em breve com Volans.


Termino me lembrando - e te contando - que o principal motivo de estarmos vendendo Mintaka e indo em busca de Volans, é por que queremos mais espaço e estrutura, para que mais e mais seres como você, possa beber dessa fonte inesgotável de amor, de cura, e da mais potente experiência de nos sentirmos vivos.


Volans: aqui vamos nós!

Obrigada Mintaka, você seguirá viva em nossos corações para sempre.


Saudade não é sentir falta. É sentir a presença de quem amamos.

Chegando em Salvador, após nossas 60 horas de uma travessia inesquecível.



Nosso trajeto pelo Spot






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